Cor, Alegria e Amor

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segunda-feira, 9 de março de 2020

O Abraço de Dráuzio


Tenho uma inclinação forte para a caridade. Desde criança. Não sei se é dom, carma ou, se é convivência com minha avó materna (falecida) e minha mãe. Desde criancinha eu assistia as duas tentando ajudar as pessoas, mesmo que elas estivessem, também, precisando de ajuda. Minha mãe, com 15 anos, pegou nos braços um menino recém-nascido, enrolado no vestido de sua mãe biológica que o deu por não ter condições de criar e, o adotou. Minha avó acabou tendo o papel de mãe, claro. A pirralha da minha mãe só tinha 15 anos.  Mas, esta é outra história...

Já levei mendigo pra casa para almoçar na mesa com a minha família. Mais tarde descobri que era um golpista. Brincou com minha generosidade. Houve época que fui mais ingênua. Esta, por exemplo. Nesta mesma época, eu era enganada semanalmente por uma garotinha na Praça Saens Pena, no Rio. Ela usava a mesma conta de luz para pedir dinheiro. Eu dava. Não aguentava aqueles olhos tristes lacrimejando.

Ainda nesta época, na fila para doar sangue no HemoRio, uma senhora chegou contando uma história triste que havia sido assaltada e não tinha dinheiro para voltar para casa. Eu tinha na bolsa o riocard e 5 reais. E parece que eu tinha mais que ela. Dei os 5 reais. 1 minuto depois um senhor veio me dizer que ela fazia aquilo ali sempre. Com a mesma historinha.

Depois de tantos outros episódios parecidos, eu entendi que não mudaria nada em minha sociedade colocando bandaid nas feridas alheias. Que era preciso fazer mais. Doar cestas básicas, dar um dinheirinho aqui e outra ali, não mudaria muita coisa. Me deu vontade de fazer mais. Foi então que conheci a ONG Junior Achievement. Eles capacitavam pessoas simples em monitores de empreendedorismo e atuavam em escolas públicas no Rio de Janeiro. Fui dar aulas pela periferia do Rio.  E notei que era este caminho, mesmo. Foi uma experiência que eu ganhei muito mais do que doei. Me somei àquelas vidas, fazendo diferença, mesmo que pequena, no cenário da vida delas e na minha.

Passado um tempo, quando eu estava Secretária de Cultura de Três Pontas, conheci uma moça chamada Rita Luz. Era psicóloga do presídio da cidade. Ela desenvolvia projetos maravilhosos e, quase sempre, nos solicitava apoio, o que me possibilitou a conhecer mais de perto e, consequentemente, seus projetos com os reeducandos (era assim que ela gostava que chamássemos) daquele presídio.  Como eu a admirava!

Um dos projetos era desenvolvido pelo Oswaldo Duarte, músico e professor de artes. Ele regia um Coral e, também, dava aula de flauta. O outro era desenvolvido pela Marita Duarte, atriz e professora de Teatro, ela dava aulas de teatro. Um dia a Marita me convidou para ir a uma aula sua lá. Eu fui. E ali, na cela, entendi um tanto de coisa que eu não entenderia se tivesse continuado no meu lugar comum. Passado um tempo, a Rita me ligou e disse que gostaria muito de iniciar um projeto de aulas preparatórias para o ENEM PRISIONAL e se eu poderia ajudar.  – Eu? Oi? Com presos? Criminosos? Há não muito tempo eu tinha perdido um primo assassinado e, sim, poderia me encontrar com o assassino dele lá. Dar aulas para ele? – Não, não. Vou querer é dar uns três socos e uns sete chutes. Me deixa aqui, dando aulas para as crianças, visitando os velhinhos da Vila, né? Já estou fazendo minha parte!

- Uai!  E minha forte inclinação à caridade? Eu não queria mudar a realidade da minha sociedade? Não queria uma vida melhor para as pessoas, sem distinção? Que olhar de julgamento é este, Dona Débora?

Foi então, em meio a mil questionamentos meus, à mim mesma, que entendi que, se eu queria transformar alguma coisa, era ali. Junto aos renegados, aos excluídos, ao “lixo da sociedade” – como um deles um dia se referiu à si mesmo para mim.

- Oi, Rita. Então. Posso dar aulas de redação. Começamos por interpretação de texto.  Pode ser?

Preparei-me psicologicamente, bem mais que didaticamente.  Preparei a aula e levei “O Sal da Terra”, de Beto Guedes, para interpretarmos.  Eu precisava de música ali. E acho que acertei, porque eles também precisavam.  Quem não precisa?

Fui.  Em uma cela grande, com quase 30 homens e, do lado de fora, dois policiais e um cachorro nos vigiando pelas grades. E me lembro como se fosse hoje a minha frase para eles: - Não estou aqui porque sou boazinha. Estou aqui porque penso no futuro dos seus filhos e dos meus filhos. E não há caminho para um futuro melhor que não seja a educação. Não me interessa os crimes que vocês cometeram. Me interessa que vocês tenham interesse em melhorar como cidadãos.

Não durou muito tempo. Foram, no máximo, 5 aulas. Um dos alunos não se comportou bem “extraclasse” e,  todos eles foram punidos com a paralisação do projeto.  Foi a experiência mais enriquecedora da minha vida. Eu me despi do preconceito, do olhar julgador, do medo e fui, talvez somente ali, caridosa de verdade. Porque é muito fácil ser bondosa com quem é bonzinho. Difícil mesmo é atuar junto da marginalidade, entendendo que eles precisam de ajuda, de bondade, de caridade.  Mais difícil ainda é ter a consciência de quem ninguém é melhor que ninguém. E que se eu quero transformar alguma coisa, é ali, na causa da ferida.

Este episódio da Suzy e do Dráuzio me fez viver emoções muito distintas em dois momentos. O primeiro foi quando a sociedade parecia ter entendido aquele abraço. Fiquei feliz e esperançosa, pensando que as pessoas são capazes da generosidade e do não julgamento. Que esta onda de amor poderia transformar tanta gente para o bem! Li algumas comentários de pessoas dizendo que não se posicionavam porque não sabiam o crime que ela havia cometido e pensei – Oras, e o que isso, neste momento importa? Agora importa que ela estava ali há 8 anos sem um abraço. E ali mesmo previ que,  algumas pessoas, para provarem suas razões, procurariam seus crimes, para apontá-la e dizer que ela merece mesmo estar ali sem abraços, sem amor, renegada pelo mundo.

Ontem à noite, sem provas concretas, vi várias publicações que acusavam Dráuzio e a Globo de hipocrisia. Dizendo que o crime de Suzy teria sido violentar e matar um menino de 9 anos. Claro que isso é chocante. MEU DEUS! Uma criança de nove anos! Esta família! E todas as outras que já sofreram com isso, eu queria, também, abraçar! Apagar um episódio deste para sempre! E impedir que isso aconteça outra vez com qualquer outra. É obvio que a emoção fala muito alto, nestas horas. A gente que é mãe, se coloca no lugar da outra mãe e dá mesmo vontade de matar quem fez mal à uma criança.

Mas, amores, Dráuzio não estava ali para saber nada sobre os crimes cometidos pelos detentos. O que, na verdade, ainda ninguém sabe, até então. Nada foi provado. Ainda não sabem se Rafael é Suzy.  Dráuzio estava ali fazendo uma matéria sobre o abandono de trans e travestis no sistema carcerário. E o abraço, meus amigos, é um impulso humano, de quem, naquele instante, foi empático e sentiu que, era só aquilo que faria bem à Suzy. Creio que, da mesma forma que escolhi me vendar e enxergar ali o ser humano que precisava da minha ajuda, por 5 dias de aulas, Dráuzio deve ter feito pelos 30 anos que se dedicou como médico no sistema penitenciário.

Não posso crer que, todo este “cristianismo” pregado nas redes digitais, que nos julga “defensores de bandidos e assassinos”,  seja o que Jesus, o mesmo das quebradas, que defendeu Maria Madalena, que perdoou seus próprios assassinos,quis  ensinar um dia. Se apropriar da religião e do nome de Jesus para condenar um abraço? – Isso, sim... é hipocrisia
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